O que era pra ser uma viagem de 10 horas, acabou durando doze horas! Já na primeira meia hora após sairmos de São Paulo (às 19h05), paramos na garagem da Itapemirim. Depois de vinte minutos, seguimos finalmente em frente. Meu olho direito começou a doer estranhamente...
O meu “colega” de poltrona me surpreendeu com um sanduba de mortadela
- Rasga um pedaço aí – dizia ele.
Não rejeitei não, já que estava com fome mesmo! Atitude bacana do carinha. Às 23h em ponto, a primeira parada oficial, num posto Graal todo equipado, na cidade de Queluz (SP). Chegou bem a tempo, minha fome tava me perturbando já. Três filés de frango depois, e fiquei mais “calmo”.
Resolvi retribuir o favor ao meu colega de poltrona, e comprei um sanduba natural pro cara. Perguntei se ele tinha gostado, e ele me fala:
- Nunca comi um trem desse não! Maravilhoso!
O Brasil é foda: de um lado, internet, fibra ótica, gente rica á beça; de outro, pessoas simples, que nunca comeram um simples sanduiche natural...
Seguimos viagem.
Dia 31/12/2003 São Paulo – Tombos (MG)
A segunda parada “oficial” foi em Paraíba do Sul (RJ). Uma Coca-Cola pra despertar, uma água no rosto. A parada só tem bus da Itapemirim, impressionante! Uma grande empresa, realmente. Só voltando um pouquinho atrás, passamos pela cidade de Volta Redonda (RJ). Cara, que cenário delirante: a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) toma uma área enorme; bocas gigantes expelem fumaça sem parar, chamas azuis, enormes, ardem sem falhar. Parece aqueles filmes de cataclisma na Terra!
Seguimos viagem, o cansaço tá pegando.
Chegamos em Muriaé (MG), paramos para um café. Nota engraçada: comprei um pão de queijo para o meu “colega”, e ele falou que nunca tinha comido também. Aí já achei que ele tava me zuando...(rs).
Cheguei em Carangola (MG) às 7h, e o ônibus para Tombos (MG) só sairia ás 9h. Dei uma volta, e depois sentei para esperar o busão.
O ônibus veio rápido, trinta minutos, e cheguei a Tombos. Cidade pequena, porém simpática. Cheguei ao Hotel Serpa e fui atendido com simpatia pela dona, Rogéria.
Tomei banho (graças a Deus, o calor tá foda!) e fui andar um pouco. Visitei o museu da cidade, que fica na antiga estação de trem; muito legal. O monitor, Rogério, é gente boa e inteligente. Logo após segui em direção da Cachoeira do Tombo. Wonderfull!! Grande, volumosa, com cinco quedas; desci até a base e fotografei muito. Depois, me dei o direito de tomar umas brejas. O Ano Novo vem aí.
Dia 01/01/2004 Tombos (MG) – Catuné (MG) 29,5 km
Acordei ás 8h, meio ressacado. O Ano Novo chegou em Tombos regado a trio elétrico e cerveja... Tomei café bem, peguei o livro do Caminho da Luz contendo as planilhas, e segui para o inicio da trilha.
A maior dificuldade que eu senti foi o peso da mochila. Já tenho experiência em travessia, mas não pude evitar trazer roupas para mais de oito dias, que é o tempo necessário para se fazer o Caminho. Meus ombros doem, mas nada que eu não possa suportar.
Bem, falando do caminho: a paisagem é muito bonita, montes, riachos, estradinhas bucólicas...as pessoas com as quais eu cruzei são simpáticas, sempre me cumprimentam; destaque para os quatro netos de Dona Francisca: não entendia muito o que eles falavam, porque pareciam que estavam acelerados, mas dei algumas risadas.
Outro momento digno de nota foi o encontro com “seu” Eduardo e dona Sandra, que me deram água num momento delicado da jornada. Desidratei muito, e nesse momento estava no meio de uma mata, sem água disponível! Por sorte encontrei a casa desses dois anjos, que me deram guarita enquanto eu me recuperava.
Seguindo em frente, me banhei num riacho gostoso, e acabei conhecendo a Gruta da Pedra Santa: lugar esquisito! Não me senti bem lá não...
Estou pernoitando em Catuné (MG), na casa de dona. Rosa, uma simpatia de pessoa, assim como a maioria das pessoas que tenho encontrado. Ser um “caminhante da Luz” fez um monte de gente querer me conhecer, virei pop star...(rs)
Nota: chegando em Catuné, um menino veio me perguntar:
- O que o senhor está buscando?
Respondi meio brincando “Deus”; então o moleque me solta essa:
- Xii, mas Deus tá lá no céu, fica longe de Catuné...- o moleque tem no máximo 6 anos, e me sai com uma dessas...(rs)
Tô conhecendo um Brasil totalmente oculto das mídias e do conhecimento público, mas sem dúvidas, um Brasil que é muito mais abundante em simplicidade e solidariedade.
Tá na hora de dormir, amanhã o caminho é subida dura.
02/01/2004 Catuné (MG) – Pedra Dourada (MG) 28,2 km
Durante a madrugada, começou a cair uma chuva muito forte, chuva que me acompanhou durante todo o trajeto Catuné - Pedra Dourada. Essa parte do Caminho da Luz se caracteriza por uma subida íngreme durante boa parte da pernada, para, nos últimos 6 km, ser de uma aliviante descida!
Antes de sair de Catuné, tomei café com a família de dona Rosa. Devo registrar aqui o meu carinho e respeito por todos lá, me trataram com muito amor.
Segui rumo a Água Santa, vilarejo pertencente a Tombos, e ali tive o prazer de prosear e tomar café com dona Ni, dona de uma conversa boa, além de ser proprietária de casas e imóveis na região; conversamos bastante, depois chegaram mais pessoas, tudo num clima muito gostoso. Foi muito agradável.
Segui, sempre acompanhado da chuva. Cruzei inúmeras cachoeiras, olhos d'água e riachos; essa terra é abençoada de água!
Os pássaros aqui também são abundantes; alguns eu conheço, outros, nunca vi antes. Todos lindos.
Antes de começar a descer para Pedra Dourada (MG), cheguei à casa de Zé Milião, essa figura simpática que me recebeu, juntamente com a sua família; a simplicidade deles é uma coisa que me comove, todos tem um coração enorme.
Cheguei à Pedra Dourada e fui até a pousada da dona Ana; sem palavras para descrever com justiça esta senhora bondosa, extremamente humana, divertida e esperta. Junto com o marido, “seu” Zito, ela começou a contar “causos”, passagens de vida, entre outros momentos. Nunca teve amor de mãe (que até tentou matá-la), mas mesmo assim não tem mágoa no coração; já foi bem pobre, segundo ela mesmo, e hoje é dona de pousada. Creio que por merecimento.
Jantei muito bem, um filezão de frango empanado, e uma sopa de macarrão. Mais um pouco de prosa, e o cansaço chegou. Meu maior desafio está deixando de ser o caminho, e passou a ser a dor nos ombros, que me atormenta. Vou tentar regular a mochila amanhã, reduzir as correrias, sei lá. Viver a base de Dorflex não vai dar, daqui a pouco nem faz mais efeito...
São 22h45, e me preparo para dormir. Esse Caminho já fez um milagre: me fez dormir antes das 2h da manhã...(rs)
Amanhã saio para Faria Lemos (MG) e, ao que parece, ainda debaixo de chuva.
03/01/2004 Pedra Dourada (MG) – Faria Lemos (MG) 28,7 km
6h15 da manhã, meu relógio despertou. Dormi bem, porém, meu ombro doía ainda. Fiz a higiene, terminei de montar a mochila, e fui tomar café. Mais uma vez fiquei tocado quando dona Ana me presenteou com um abridor de garrafas em forma de rato (!!). Valeu pelo valor simbólico, foi muito legal.
Me enganei quanto à chuva: peguei apenas garoa no caminho. Mas eu quase estrago tudo, pois peguei o caminho errado para Faria Lemos; eu estava no rumo para Tombos, quando um rapaz num carro branco perguntou se eu era “caminhante da luz”. Respondi que sim, e ele me disse:
- Esse aqui não é o caminho para Lemos não. O caminho é aquele – e apontou para o outro lado...Menos mau, estava no comecinho ainda.
O caminho teve apenas 3 km de subida, o resto do caminho foi só descida; hoje cruzei com muitas, muitas cachoeiras, riachos e olhos d'água, minas...meu Deus, é muita água!
Dois destaques: a Cachoeira da Surpresa, que cai com uma força brutal, produzindo vento e sereno. Fantástica!
E também a lage de pedra do rio Mateus, em Cafarnaum (MG). Incrível, o rio corre sobre uma base de pedra...sei lá, nem sei descrever. Muito legal.
Hoje meu ombro deu uma mostra fiel que pode me dar problema: durante o trajeto todo, senti uma dor aguda. Estou um pouco preocupado, faltam ainda quatro dias de travessia (ou 5, se eu ficar em Caparaó) e parece que Dorflex tá perdendo efeito. Vamos ver o que acontece quando eu chegar em Carangola (MG).
Nota sobre Faria Lemos: não sei se pela dor no ombro, se pela falta de grana (só tenho R$ 15, para pagar o hotel, e ficar sem janta), não sei...mas não gostei da cidade. Sei lá, energia estranha. Como disse, podem ser fatores estressantes que me fizeram ter essa impressão, mas que eu tô sentindo isso, ah eu tô.
Amanhã sigo para Carangola.
04/01/2004 Faria Lemos (MG) – Carangola (MG) 29,9 km
Dormi bem, apesar do ombro. Senti um pouco de febre durante a noite, mas com um remédio, passou.
Como não tinha jantado na noite anterior, mandei ver no café! Comi pão, queijo, frutas, café com leite...pra completar, ainda, fiz uma “quentinha” (peguei laranja, maçã, carambola, pão com queijo, e botei na mochila).
Iniciei a caminhada. Desta vez não cruzei com tanta água, mas o caminho me parece com o de Pedra Dourada - Faria Lemos: uma boa parte foi plano ou descida, só teve uma subida, a da Serra dos Cristais, subida razoável.
O Sol quis dar as caras hoje, mas não apareceu totalmente. O mormaço queimou meus braços. Tive uma surpresa boa: meu ombro direito parou de doer. Outra surpresa: meu ombro esquerdo começou a doer. Neste trecho do caminho, fiz minha melhor marca: 5 horas. E não que eu tenha acelerado, fiz num ritmo tranquilo.
Carangola: a cidade é a maior das que fazem parte do Caminho da Luz.Tem vários prédios altos, comércio ativo. Parece ser interessante.
Antes de fechar o dia, aconteceu um encontro que eu aguardava: conheci Albino Neves, o idealizador do Caminho da Luz, e sua namorada Carla. Foi uma conversa agradável, ele é uma pessoa que vibra uma energia boa: é um ser humano, tem defeitos, mas parece ser uma figura humana impar.
Estou cansado...amanhã tem mais.
05/01/2004 Carangola (MG)
Bem, mais um dia ensolado na minha vida! Levantei, escovei os dentes, tomei um belo café da manhã, e lá fui eu para...a cama?!
Explica-se: ontem, deixei as roupas que eu tinha usado até agora para o hotel lavar. Acontece que as roupas não secaram, aí fui obrigado a ficar mais um dia em Carangola.
O dia passou chatinho, entre o quarto de hotel e uma volta na praça...A noite caiu, tudo parecia devagar; daí, Albino e Carla chegaram! Graças a Deus! Conversamos, trocamos idéias, eles me chamaram para conhecer a casa deles. E que casa!! Muito bonita, espaçosa, com clima de recanto de paz. Gostei muito das conversas, conheci o irmão do Albino, Jorge (figuraça!!), enfim, meu dia foi salvo da chatice.
Vou dormir, amanhã sigo pelo Caminho da Luz.
06/01/2004 Carangola (MG) – Espera Feliz (MG) 31,8 km
Acordei muito bem disposto, ou como dizem os mineiros, “tava animado pra subir a serra”. O café da manhã do Gran Hotel é muito bom, comi muito bem.
7h já tava na estrada. Meu destino é Espera Feliz (MG), passando por dentro de Caiana (MG). O caminho, nesse trecho, toma ares de magia: subimos a serra da Caiana, depois andamos 10 km no leito da antiga Estrada de Ferro Leopoldina, com direito a passagem por duas antigas estações (Parada General e Ernestina). O visual, permanente, é o de um penhasco à sua direita, e uma cadeia de montanhas bem ao fundo; e à esquerda, um paredão de pedra.
A gente nem faz idéia das paisagens que existem nesse país: hoje eu passei por um túnel escavado na pedra (show!) e uma samambaia gigante, de cujas raízes brotam água limpa (bis do show!!). Fora as inúmeras fontes de água pura que aparecem no caminho.
Cruzei a cidade de Caiana: pequena, seca, foi a primeira impressão que eu tive; mas lá também conheci dois adolescentes, Natália e Railan, bem simpáticos. Carimbei a minha credencial de “caminhante da luz”, tomei uma Coca, e segui caminho. Entre Caiana e Espera Feliz tem 8 km, sendo que apenas 1 km de subida. A cidade me pareceu simpática, ajeitada e organizada. Gostei do hotel (se chama Vale Verde), onde fui muito bem recepcionando pela atendente Tamara. Conheci nessa cidade interessante uma pizzaria chamada Aeropizza, cujas donas (primas) são a simpatia em pessoa.
Preciso registrar aqui uma frase que eu ouvi de Paulinho, um cara que eu conheci nestes caminhos de Minas:
- Mineiro é que nem bicho: é só fazer intimidade, que pega amizade fácil.
Isso resume o dia de hoje.
07/01/2004 Espera Feliz (MG) – Alto Caparaó (MG) 32,6 km
Acordei ás 6h30 para o último dia de Caminho da Luz. Tomei café, preparei a mochila, paguei o hotel, e segui caminho.
De Espera Feliz a Caparaó tem 20 km; fiz o caminho meio desligado, triste até. É como se eu não quisesse terminar o caminho, sei lá. Meu passo estava lerdo, pequeno...
Mesmo assim, disperso, pude notar a beleza do caminho; durante todo o trajeto, fui margeando algum leito de rio.
Este foi o trecho onde mais conheci gente da terra: sr, João, que me deu carona de moto; dois meninos de bicicleta, alguns trabalhadores rurais; sr. Sebastião Gessi, na estrada de Caparaó; João Francisco, terapeuta de Muriaé, numa outra carona, já indo para Alto Caparaó, entre outros.
O caminho entre Espera Feliz - Caparaó é uma sequência plana; é a famosa calmaria antes da tempestade: de Caparaó até Alto Caparaó (MG), são várias subidas e descidas, puxadas. Ao fundo, sempre, o maciço do Caparaó.
Quando vi o Pico do Cristal pela primeira vez, estava na caçamba de uma Fiat Strada (na segunda carona do dia) ao lado de João Francisco, aquele terapeuta de Muriaé; foi ele quem me mostrou o Cristal, dizendo:
- Nasci aqui, aos pés do Pico do Cristal.
Quando o vi...não sei explicar, fui tomado por uma alegria juvenil, fiquei realmente emocionado, sem exageros; e esta sensação me acompanhou até a chegada a Alto Caparaó (ou Caparaó Velho, como dizem os de lá).
A cidade de Caparaó é bonita. Fiquei pouco tempo, cerca de uma hora, mas gostei do que vi. Conheci “seu” Daniel, que carimbou minha credencial, e segui.
Alto Caparaó (MG) é fabulosa!!
E isso é o mínimo que se pode falar. As montanhas ao fundo compõe um cenário belíssimo; a cidade é muito bonita também, casas típicas, uma filosofia de cuidado com a natureza que me agrada muito, etc, etc, etc.
Estou hospedado no Albergue da Juventude Querência; os donos, Rogério e Solange, são muito legais.
Pretendo passar mais alguns dias aqui, ainda há coisas para conhecer.
Quanto ao Caminho da Luz, minha sensação é que passei por algumas mudanças; conheci muitas visões de mundo, pessoas, simplicidade, simpatia. Tive alguns contratempos, que fazem parte de toda jornada. Provavelmente farei o Caminho novamente.
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